Porque estamos falhando no ensino de Matemática?

Neste artigo pretendo analisar os motivos pelos quais o ensino das ciências exatas, em particular a matemática, enfrenta dificuldades, propondo algumas correções e sugerindo o debate em torno do assunto.

Minha afirmação de que há um problema com o ensino destas disciplinas não é o resultado de uma pesquisa aprofundada entre professores e egressos dos bancos escolares. Ela simplesmente vem da experiência em sala de aula e da constatação da dificuldade com que os alunos de cursos superiores, especialmente nos períodos iniciais, enfrentam ao cursar disciplinas tais como matemática e física, e a claríssima falta de formação apresentada por eles. A isto acrescento o argumento de que pessoas adultas, mesmo com curso superior completo em área do conhecimento que não em ciências exatas, muito pouco ou quase nada retém como conhecimento assimilado do conteúdo supostamente ministrado durante as fases de ensino básico e médio. É comum ouvir as pessoas reclamarem de que sofreram muito em seus cursos de matemática e física e, se pouco ficou retido ou acumulado como conhecimento adquirido, resta perguntar: para que todo este sofrimento?

Esta não pretende ser uma crítica aos colegas professores, em suas abordagens particulares do tema em sala de aula, e nem ao aluno que tem dificuldades no aprendizado. Pelo contrário, acredito que existem erros estruturais na abordagem de ensino e que é possível adotar rumos mais eficientes. Defendo que é possível alcançar níveis acadêmicos muito superiores aos atuais e, por isto, proponho um debate sobre como obtê-los. Para tanto separei a discussão em tópicos, consciente de que estes são interligados e se afetam mutuamente.

  • Investimentos insuficientes na educação longo da história do pais.
  • Educação familiar deficiente e excessiva dependência da escola na educação básica das crianças.
  • Escolha infeliz de tópicos na construção de ementas para o ensino básico e médio. Abordagem incompleta da matemática moderna.
  • Gap de gerações, principalmente devido à informatização.

Investimentos na educação insuficientes ao longo da história do pais

Este tópico afeta a educação de forma abrangente e não apenas o ensino de matemática. É evidente que se gasta muito pouco com educação no Brasil. Ensino de boa qualidade custa caro principalmente com remuneração de pessoal qualificado, aquisição de boas instalações e equipamento para laboratórios, computadores, ferramentas auxiliares de exposição e material de apoio. No entanto existe boa convergência entre os analistas de que este gasto é certamente o investimento de melhor retorno que pode fazer uma nação.

Em primeiro lugar há o desestímulo que existe para que uma pessoa abrace a carreira de professor, sabendo que estará submetida a condições de trabalho impróprias e salários defasados em relação as outras profissões. Hoje é bem conhecida a recusa dos jovens em se preparar para o trabalho em sala de aula e consequente falência de inúmeros cursos de licenciatura em ciências exatas nos diversos estados. Cada vez mais os cursos de licenciatura se tornam menos atraentes para os alunos de melhor formação básica. A própria forma de se encarar um curso de licenciatura é sintomática de um problema: alunos que se preparam para o ensino são frequentemente tratados como alunos de segunda classe e recebem apoio e estímulo inferior ao que se dá a seus colegas de bacharelado. Além disso os cursos são de menor duração, sendo realizados em apenas três anos, tempo insuficiente para criar uma base sólida de conhecimento na disciplina específica escolhida e, ao mesmo tempo, em pedagogia. A maioria dos alunos de licenciatura, especialmente nas escolas particulares, frequenta cursos noturnos e trabalha durante o dia, muitas vezes em regime de tempo integral, o que torna impossível para eles uma assimilação mínima do conteúdo. São estes alunos, formados de modo mediano, que compõem o quadro do professorado brasileiro atual, sem mencionar uma grande quantidade de professores sem formação específica nas disciplinas que lecionam.

Como ilustração, considere os níveis mais básicos da escola, oferecidos para as crianças mais jovens. Neste setor do ensino estão os professores com piores remunerações e com formação mais inadequada e insuficiente. As professoras ou “tias” são quase sempre pouco mais que “babás”, à despeito de uma “proposta pedagógica” elegante e bem elaborada que a escola certamente possui e guarda orgulhosa em seus arquivos e que estas professoras desconhecem ou não compreendem. Os estudos mais modernos sobre o desenvolvimento da cognição humana mostram que os anos iniciais de uma criança são marcados por um aprendizado rápido e intenso. Esta é a fase em que toda a base educacional, além do próprio caráter do indivíduo, é construída. Não me parece portanto apropriado entregar às pessoas com menor nível de formação as crianças em sua fase de maior potencialidade.

Reconhecidas as exceções das pessoas mais dedicadas que, por gosto ao ensino ou pela disciplina que ministra, procuram complementar sua formação, pode-se constatar uma formação acadêmica insuficiente nos profissionais do ensino e um apoio à educação continuada muito reduzido. Isto torna difícil uma reformulação de currículos e conteúdos programáticos que é necessária, como pretendo enfatizar.

Muitos outros fatores contribuem para a desestruturação da escola, entre eles a imposição oficial de propostas elegantes e pouco práticas que se alternam e se substituem em ritmo demasiado rápido para que mesmo um professor mais atento se mantenha familiarizado com elas.

Há um aspecto político importante associado a este problema. É muito evidente que o Brasil representa mundialmente apenas um mercado consumidor e que não precisa fazer um grande esforço para se manter atualizado com a rápida evolução científica e tecnológica mundial. O pais produz hoje um número reduzido de artigos e registros de patentes, em comparação com outras nações do mesmo porte. Este conceito, que parece dominar a elite dirigente, infelizmente está incorporado visceralmente pelas famílias e pelos próprios alunos que não assistem de perto à evolução tecnológica e que estão habituados simplesmente a comprar tecnologia pronta, assim como faz o próprio pais. A resistência contra o atingimento ou manutenção de ensino em nível elevado parte também destes alunos que não encontram motivos para se esforçar, tendo em vista um mercado de trabalho que parece valorizar pouco o desempenho acadêmico.
sala de aula

Dentro de um panorama de multi nacionalização irreversível, o esforço para obter bom nível de ensino representa um ato de resistência política, uma luta contra a incorporação de nosso pais que, se envolto pela globalização sem o devido preparo, será engolido e destruído, simplesmente.

Educação familiar deficiente e excessiva dependência da escola na educação básica dos jovens

Outro ponto importante fica explícito na queixa frequente, por parte dos mestres, de que os alunos não recebem uma educação básica em seus núcleos familiares, enquanto os pais exigem muito da escola na reposição desta carência. A “falta de educação” se reflete em relações interpessoais difíceis em sala de aula, com alunos agredindo verbalmente e até fisicamente seus professores que não contam com o apoio da escola, da família ou da própria sociedade e, com toda razão, sentem-se acuados. Esta característica é realimentada pela deficiência técnica dos professores que acabam por não impor respeito a seus alunos por pura e simples falta de boa formação técnica. A comum identificar uma situação em sala de aula onde o professor inseguro de suas respostas prefere adotar a postura de não tratar das perguntas feitas ou respondê-las de forma incorreta. O professor que não tem uma visão ampla do tema que leciona fecha as portas da curiosidade que leva ao aprofundamento e à pesquisa e não engaja o estudante em uma relação de respeito e cordialidade.

Escolha infeliz de tópicos na construção de ementas para o ensino básico e médio. Abordagem incompleta da matemática moderna.

Um ponto que considero ser um entrave para a boa evolução do ensino das ciências exatas está na escolha de tópicos e construção de ementas e grades curriculares. Como professor do ensino superior considero necessária uma reformulação destas ementas. Muitas vezes, em minha experiência em sala de aula, ouvi alunos, pais e até mesmo professores de matemática e pedagogos atribuírem a culpa da queda na qualidade do ensino à adoção da chamada matemática moderna. Estas pessoas costumam afirmar que antigamente os alunos aprendiam a fazer contas e que podiam memorizar com mais eficiência os tópicos elaborados pelo professor. Também é comum ouvir os pais reclamarem que não conhecem esta matemática e, por isto, não podem ajudar seus filhos no processo de aprendizagem.

(1) Entre eles estavam Henry Cartan, Jean Diedonné e André Weyl, no grupo inicial, que se inspirou nos avanços da escola alemã, representada por exemplo, por David Hilbert e Emily Noether. Mais tarde verificamos entre eles a presença de Serge Lang, Laurent Schwartz e vários outros.A história do grupo é fascinante e pode ser lida com algum detalhe no artigo sobre a História do Cálculo, neste site.

Este tema exige uma consideração mais detalhada. A matemática moderna é a designação que se dá a uma reforma do ensino e da própria compreensão da matemática ocorrido na França em torno de 1935 e anos seguintes e que desembarcou no Brasil na década de 1960. Havia naquela época, em toda a Europa, uma carência de professores experientes e com maior titulação, uma vez que muitos haviam morrido durante a primeira guerra mundial. Um grupo de jovens professores se reuniu para criticar os livros didáticos existentes, iniciando pelo livro adotado para o cálculo, e resolveu reescrever textos didáticos imprimindo neles uma maior organização lógica e didática. Os textos eram publicados pelo grupo sob o pseudônimo de Nicholas Bourbaki, um personagem fictício, adotado apenas como brincadeira e para indicar que o resultado era o esforço de um grupo. Mais tarde muitos dos participantes daquela iniciativa mostraram ser grandes matemáticos(1). Estes professores se reuniam e discutiam extensamente todas as contribuições oferecidas e os textos eram reescritos diversas vezes até se encaixarem plenamente dentro da proposta do grupo. Resumidamente o grupo Borbaki considerou que a matemática deveria ser baseada sobre a teoria dos conjuntos e que deveria manter, ao longo do processo de ensino, rigor lógico e simplicidade. Para isto criaram uma nova terminologia e reformularam conceitos ao longo dos tempos.

Congresso Bourbaki em 1939: Simone Weil, Charles Pisot, Andre Weil, Jean Dieudonné, Claude Chabauty, Charles Ehresmann, Jean Delsarte.

Aos poucos a reforma proposta por Bourbaki se instalou na educação francesa e depois se espalhou para todo o mundo. Naquela época era muito comum que matemáticos brasileiros buscassem na França sua titulação mais avançada, de forma que esta reforma logo se instalou no Brasil. O grupo Bourbaki recebeu também muitas críticas, as principais se referindo à ausência de um tratamento mais completo, sob forma de algoritmos, para a solução de problemas e uma supervalorização da álgebra em detrimento do pensamento geométrico. Muito foi dito sobre a ausência de figuras nos textos do grupo.

Embora aceite a afirmação de que não podemos simplesmente copiar uma iniciativa feita há quase um século, defendo aqui que a proposta básica de Bourbaki está correta e que a matemática deve ser inteiramente construída sob a noção básica de conjuntos. Afinal, a matemática é de fato um estudo sobre conjuntos e as relações entre eles. A reforma proposta pelo grupo francês não foi inadequada mas incompleta ou implementada de modo incompleto entre nós. Os alunos modernos deveriam assimilar os conceitos lógicos da matemática e, de posse destes, aprender a resolver problemas, que podem ser de natureza pragmática e aplicada sempre que possível, sem detrimento da formação mais abstrata e teórica. Considerações geométricas podem e devem ser usadas amplamente, assim como a contextualização do conteúdo e aplicação em problemas cotidianos, sempre que aplicável. Além disto, em uma época dos computadores e calculadoras de baixo custo e alta eficiência, não faz sentido sobrecarregar os alunos com operações complicadas e sofridas embora, claro, todos necessitem conhecer os procedimentos ou algorítimos usados para realizar as operação básicas.

Considero que a escolha de tópicos e níveis de abordagens do conteúdo das séries básica e média é inapropriada e ineficaz e necessita de ampla reformulação. A consideração sobre conjuntos deve ser mantida e ampliada. Relações entre conjuntos e membros dos conjuntos devem ser exploradas a cada passo, as operações fundamentais devem ser apresentadas neste contexto. O ensino da matemática em seus níveis mais básicos e fundamentais deve buscar a construção do pensamento lógico, da construção conceitual. Sendo impossível prever quais, entre todos os alunos, buscarão os níveis superiores das ciências exatas, é necessário ter uma cobertura flexível que permita o avanço dos mais inclinados a isto, sem submeter a totalidade dos alunos à exigência da obtenção de competências inatingíveis.

Gap de gerações

A meu ver existe uma dificuldade referente ao ensino que ultrapassa de longe as barreiras nacionais e não é exclusividade de nosso pais. Ela pode ser sentida em sala de aula, quando um professor mal treinado tenta ensinar “informática” para seus alunos pedindo que cliquem em um determinado ícone, ou arrastem, ou copiem e colem textos e imagens. Enquanto o professor termina seu duplo clique os alunos já se conectaram com os amigos em salas de bate papo, já enviaram seus textos repletos de abreviações assassinas da língua portuguesa, já editaram a imagem de uma colega inserindo-a em uma foto sensual e, com um pouco de sorte (ou azar!) algum aluno mais qualificado já invadiu o site de uma grande empresa e deixou lá um recado atrevido.

Existem estudos que mostram que a distância entre gerações pode ser sentida cada vez para diferenças de idade menores. Um aluno jovem hoje se senta para fazer a lição de casa com a televisão ligada, ouvindo música e falando com os amigos em salas de relacionamentos. E ele (ou ela) consegue fazer isto! A informática e a ampliação da disponibilidade da informação por meio da internet estão transformando o mundo de uma forma difícil de assimilar para as gerações com formação consolidada, entre eles pais e professores.

Hoje faz muito pouco sentido, ou talvez nenhum, pedir um trabalho escrito para os alunos, a menos que o professor seja versado em mecanismos de buscas e esteja disposto a passar a madrugada procurando as fontes de onde foram retirados os trabalhos e verificar se eles apresentam alguma criação do aluno ou apenas demostram capacidade de “copiar e colar”. Além de tomar iniciativas primárias (como a de proibir a wikipedia) é necessário aprender a usar a informática a favor da educação. Muitos alunos conseguem adquirir habilidades novas e extraordinárias através da internet, coisas tais como usar um software de edição de imagens ou vídeos ou até mesmo aprender a tocar um instrumento musical.

(2) Por exemplo o uso de softwares algébricos, tais como Mathematica, Maple ou Sage nos cursos de Cálculo não é simples e não foi ainda satisfatoriamente elaborado.Outra escolha interessante é o site Wolfram Alpha.

É claro que o uso do computador, estando em rede ou não, será parte integrante da vida das pessoas no mundo civilizado, e cada vez mais presente. Será preciso então incorporá-lo ao dia a dia das escolas de forma efetiva. Necessário será reconhecer que a plena utilização do computador como ferramenta didática não é plenamente conhecida e muitas iniciativas não apresentaram os resultados esperados(2). Defendo que os alunos devem ter uma informação básica em computação e que deveriam, pelo menos, conhecer os fundamentos da programação. O uso de uma máquina complicada, seja o computador ou outra qualquer, sem a menor noção de seu funcionamento favorece a formação de uma visão obscurantista da sociedade em que vivemos.

Gráfico gerado pelo software algébrico Sage

Nos dias atuais um indivíduo chega em casa e acende uma lâmpada cujo funcionamento só pode ser razoavelmente compreendido em termos de física quântica. Ele uso relógios e telefones onde os elétrons tunelam (atravessam) barreiras clássicas e, se ficar doente, pode fazer uso de um PET (positron emission technology), um aparelho que usa antimatéria (no caso o pósitron ou anti-elétron) para fazer um mapeamento minucioso e em camadas de seu corpo e órgãos internos.

É evidente que não se pode esperar que todos conheçam todos os ramos do conhecimento, mas é desejável que todos tenham uma boa noção sobre o funcionamento dos aparelhos e tecnologias que usam. Caso contrário estaremos usando caixas pretas ou “mágica” no sentido proposto pela terceira lei de Clarke-Asimov: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.

Aliás, vivemos já em um momento estranho da história da civilização, em que ciência e tecnologia avançada convivem com a miséria e a ignorância. É claro que este problema tem como causa maior a desigualdade na divisão de recursos em todo o planeta, que gera bolsões de extrema pobreza e ignorância. Mas mesmo entre as pessoas e sociedades mais favorecidas persiste e até floresce o obscurantismo sob forma de conservadorismo, de religiões fundamentalistas e outras mazelas do espírito humano desinformado, e de superstição pura e simples. Já há alguns séculos na história humana é impossível que uma pessoa domine todas as áreas do conhecimento. Isto torna ainda mais relevante a escolha de tópicos essenciais que devem prevalecer no esforço educacional. Caso contrário teremos um novo período de trevas em que poucos cientistas e técnicos, geralmente sob o jugo forte do poder econômico, ditarão a forma de vida dos cidadãos comuns, meros consumidores e espectadores do progresso e da evolução.

Para que serve a Matemática?

Os professores de matemática hoje se deparam com uma tarefa difícil: a motivação de seus alunos para os tópicos mais áridos desta ciência. Este problema tem diversas causas que vão desde os problemas com a qualidade geral do ensino até, por exemplo, a crença de que “está tudo pronto”, de que nada mais resta a desenvolver ou a descobrir. É comum ouvir reclamações de que um determinado cálculo pode ser realizado rapidamente em um computador e que, portanto, não seria necessário aprender a utilizar aquela técnica. No entanto sabemos que a tecnologia progride a passos rápidos e que o volume de artigos e novas idéias científicas nunca foi tão grande como hoje. Por isto, procurando contribuir para um melhor entendimento de nosso propósito como professores e estudantes de matemática, me proponho perguntar: por que devemos estudar matemática? Para que serve, afinal, a matemática?


Em primeiro lugar a matemática serve para descrever o mundo de uma forma rigorosa e precisa. Ela é uma linguagem, uma parte essencial na formação de modelos. Um modelo é um conjunto de definições e conceitos que busca descrever de maneira tão completa e fidedigna quanto possível o mundo natural ou uma parte dele, ou ainda processos artificiais criados pela crescente complexidade dos relacionamentos humanos. Esses modelos, além de serem tão completos quanto possível e possuírem coerência lógica, devem ser testados, comparados com o sistema real que ele pretende descrever por meio da observação ou da experimentação. Em caso de disparidades entre a descrição e a observação empírica o modelo deverá ser refeito e aperfeiçoado, ou mesmo abandonado se necessário.

Modelos são representações e não o objeto ou sistema de objetos descritos. Eles podem ser muito simples, como o modelo que representa o conjunto dos números naturais, {1, 2, 3, …}. Estes números foram usados, entre outras coisas, para contar quantas cabeças de gado um homem primitivo tinha e como ele poderia troca-las por alimentos ou outros bens. Nesta contagem ele pode ter usado pedrinhas (daí a palavra cálculo) para representar seus animais, estabelecendo uma relação biunívoca entre animais e pedras. Se possuía menos que uma dezena de bois e vacas, é possível que tenha usado apenas os dedos das mãos (de onde surgiu a palavra dígito). Embora simples este modelo não é trivial. É possível representar com um número natural quantos grãos de areia existem na Terra? (A resposta é sim!) E, principalmente, este modelo é incompleto.

Se pretendermos que nossas negociações incluam dívidas (e, como consequência, o calote!) teremos que expandir o modelo de forma a abarcar os números negativos e o zero, resultando no conjunto dos inteiros. O conjunto dos inteiros é ainda menos óbvio e mais abstrato que o dos naturais pois não temos conhecimento de alguma coisa concreta que exista em quantidades negativas! E mesmo este novo conjunto não é completo e não suficiente. Se quisermos oferecer como parte dos negócios uma fração de um terreno ou um pedaço de um queijo gigante teremos que ampliar o conjunto dos inteiros para outro conjunto que contenha frações, o conjunto dos racionais.


Esse parece agora ser um conjunto bem bonito e completo, o conjunto dos racionais, não tivessem os gregos descoberto que alguns números importantes não se encaixam dentro deles. A diagonal de um quadrado cujos lados medem um (em qualquer sistema de unidades) não é um racional e nem a razão entre a circunferência e o raio de um círculo (igual a 2 pi) não são números racionais. A experiência e a necessidade de descrever coisas pedem um modelo mais amplo. Por isto surgiram os irracionais, os números que não podem ser postos sob forma de uma fração. Racionais e irracionais, juntos, formam o conjunto dos números reais.

Estamos agora, a esta altura do desenvolvimento dos modelos matemáticos, muito longe dos conceitos intuitivos e primários. O conjunto dos números reais possui propriedades intrigantes e muito pouco óbvias. Entre dois números reais quaisquer existe uma infinidade de outros reais. Sua representação gráfica, a reta real, é infinita em ambas as direções e os pontos se empacotam de forma perfeita sem deixar nenhum furo ou imperfeição. O conceito é extremamente poderoso, possui coerência lógica e serve como modelo para a descrição de grande quantidade de objetos do mundo real. No entanto, não é tão claro se existe qualquer objeto no universo real que seja um bom representante desse modelo. Ele é útil para fazer descrições aproximadas de objetos que existem: se medirmos a distância entre duas cidades ou o comprimento de um fio estaremos ignorando, de forma totalmente apropriada e válida, as imperfeições do fio e da estrada que certamente não são contínuos como a reta real. Se ampliarmos com um potente microscópio uma seção do fio, veremos que ele, sendo de metal, é feito de granulações bem organizadas apresentando grandes vãos entre os átomos de sua estrutura. Isto não nos impedirá, no entanto, de usar réguas comuns para medir seu comprimento.

Observamos aqui uma tendência. O conjunto dos reais engloba os racionais, que por sua vez engloba os inteiros, que contém os naturais. O progresso do conhecimento se dá na direção da ampliação dos conceitos e na quebra das antigas barreiras. E, diferente do que se costuma pensar, os conceitos antigos, desde que bem estabelecidos, não são revogados como se revoga uma lei caduca e sim ampliados no que diz respeito a seu domínio de aplicação. Uma observação importante deve ser acrescentada aqui. Neste ponto do desenvolvimento da matemática (e mesmo antes disto, na verdade!), e da civilização humana como um todo, já teremos a necessidade de escolas. Precisaremos tirar as crianças de seus brinquedos e colocá-las em salas de aulas para garantir que o conhecimento acumulado por gerações de estudiosos, teóricos ou pessoas pragmáticas e engenhosas, seja repassado para as novas gerações. E, na medida em que cresce o domínio da ciência e as exigências das aplicações, mais tempo as pessoas deverão se dedicar ao estudo e a preparação para seu desempenho na vida e no ambiente de trabalho. Este é o preço que pagamos por termos descido das árvores e começado a usar ossos como ferramentas, modelar pedras para servir como instrumentos e armas, aprendido a domesticar o fogo.

Os modelos, é claro, passaram a representar objetos de complexidade crescente. Na planilha do engenheiro um prédio é um modelo de equilíbrio de forças onde a matemática permite que os pesos, as tensões no concreto e nos ferros se equilibrem para deixar estável a construção. Podemos descrever como se comporta uma mola mergulhada em um meio viscoso e sujeita a impactos externos, exatamente como existe no sistema de molas e amortecedores de um automóvel. O sistema é simples mas sua descrição completa exige um tópico matemático sofisticado, o das equações diferenciais. Queremos saber como uma corrente de elétrons se move dentro de materiais semicondutores. Para isto precisamos de um modelo bastante elaborado da física, a mecânica quântica. Com ela construímos relógios digitais, computadores e discos rígidos, entre outras máquinas diversas.

Grande parte das pessoas hoje, exceto aqueles excluídos da modernidade pela pobreza, usa direta ou indiretamente um satélite artificial para telecomunicações colocado em órbita geo-estacionária. Esses satélites giram em torno de nosso planeta com uma velocidade tal que parecerá, para um observador fixo na terra ou para a antena de seu receptor de TV, como estacionário em pleno ar. Para colocar um artefato desses em órbita é necessário usar o modelo da gravitação universal criado por Newton e, em alguns casos, será até mesmo necessário fazer correções usando o modelo da relatividade de Albert Einstein. Muita matemática está envolvida e provavelmente computadores sofisticados serão empregados nessas operações.

Exemplos de modelos mais prosaicos, mas igualmente úteis, podem ser encontrados na economia, no estudo das variações de preços dos produtos oferecidos ao consumidor, da inflação, do valor de um depósito feito meses atrás na caderna de poupança ou outra aplicação mais rentável. Modelos análogos serão usados para compreender a disseminação de uma doença, o contágio por um vírus ou a divulgação de um boato. Um modelo pode ser simples, como aquele que descreve os valores disponíveis em uma aplicação bancária com rendimento fixo, ou complicado e extenso como seria o modelo, ainda não desenvolvido, que descreve as oscilações nas bolsas de valores.

Tais modelos são úteis no presente, essenciais para a manutenção da vida moderna, complexa como ela se tornou. Mas eles têm uma habilidade extra: nos permitem prever o futuro. Um bom modelo descreve o que existe hoje e aponta para o que existirá amanhã, mesmo que esta previsão só possa ocorrer em termos probabilísticos, em alguns casos.

Um astrônomo poderá ver hoje em seu telescópio uma grande pedra varrendo o espaço em grande velocidade e decidir, usando os modelos matemáticos à sua disposição, se esta pedra colidirá ou não com nosso planeta. Como exemplo, a colisão do asteróide Shoemaker-Levi com o planeta Júpiter foi prevista com grande antecedência. Um bom modelo estelar será hábil para dizer, supondo conhecidas as condições atuais da estrela, em que estágio de sua evolução ela se encontra e por que etapas passará no futuro. Podemos, é claro, optar por uma visão poética dessa mesma estrela e isto será, sem dúvida, muito bom de se fazer. Mas, teremos perdido a habilidade de descobrir que essa estrela terá um dia esgotado seu combustível nuclear, que explodirá e poderá se tornar um buraco negro.

Finalmente chegamos àquela que considero ser a utilidade mais fina e essencial da matemática. Supridas as necessidades básicas do ser humano, garantida sua sobrevivência, seu anseio pela procriação e preservação da espécie e seu nível mínimo de conforto, a mente se volta para o conhecimento pelo conhecimento. Em um nível mais refinado não tem sentido perguntar para que serve a matemática. Por um lado um teorema serve porque é correto, porque é uma verdade. Por outro lado inúmeras teorias matemáticas foram desenvolvidas de forma puramente acadêmica, ou filosóficas, e muito mais tarde foram usadas em aplicações espetaculares.

Chegamos hoje a um estado de desenvolvimento da civilização onde a diversidade parece ser essencial. Precisamos de técnicos, de mão-de-obra braçal, de teóricos e de filósofos para enfrentar os desafios múltiplos e prementes por que passamos hoje. Um exemplo simples pode ser dado para corroborar esta afirmação: um pouco de ética bastaria para resolver grande parte das mazelas em nosso pais e conflitos pelo mundo afora e, neste sentido, precisamos de cidadãos filósofos. A experiência da história mostra que os povos que fizeram uso puramente pragmático da matemática entraram, ou já estavam, em declínio, enquanto os tempos áureos de qualquer povo, como na Grécia clássica, foram sempre pontuados pela livre investigação em todas as áreas a eles acessíveis, particularmente na matemática.

Vivemos em um período extraordinário da história da civilização. Temos hoje a habilidade para construir modelos científicos que descrevem o universo globalmente, que lançam perguntas sobre sua origem e destino e apontam para suas respostas. Estamos desvendando o código primário da existência humana através do projeto Genoma. Por outro lado, possuímos armas de destruição em massa e o poder para alterar de forma radical o clima no planeta. Os meios de transporte e as telecomunicações estão destruindo as barreiras nacionais e este processo não é suave ou indolor, particularmente para as nações mais pobres e com desenvolvimento tecnológico pouco consolidado.

A inserção em um mundo sem fronteiras exige profissionais de primeira linha, com formação simultaneamente profunda e ampla. Refletir sobre o avanço da ciência e da tecnologia, sobre os problemas que ela resolve e outros que ela causa, e participar deste progresso é essencial para que a sociedade brasileira possa se inserir na cidadania global em nível de igual participação e oportunidade.